Escrever sobre a religião nos filmes de Pedro Almodóvar não foi minha ideia. Foi uma sugestão bonita ─ um tema que soa tão intrigante e pertinente quanto é. Contudo, minha relação com o diretor espanhol era superficial: havia durado apenas dois, ou dois filmes e meio, ainda na fase do flerte, do olhar provocador. Decidi, então, mergulhar em sua produção. Tudo Sobre Minha Mãe (Todo Sobre Mi Madre, 1998), A Pele que Habito (La Piel que Habito, 2011), Volver (2005), Abraços Partidos (Los Abrazos Rotos, 2009), Má Educação (La Mala Educación, 2003), Julieta (2016) e Maus Hábitos (Entre Tinieblas, 1983), tudo ao longo de três semanas, nessa ordem. Penso que agora devemos ser pelo menos namorados.

[Tesauro]
Catolicismo como herança cultural
Os temas “fé” e “religião” aparecem recorrentemente nos filmes, mas quase nunca são os principais. Tudo Sobre Minha Mãe, por exemplo, trata principalmente da mulher emancipada e de sua solidão, mas a religião deita sobre o grávido ventre de uma freira burguesa, Rosa (Penélope Cruz). Volver foi criado, entre outros motivos, para que Almodóvar lidasse com a morte, mas o varrer ritualístico dos túmulos de familiares empoeirados pelo vento de La Mancha está ensopado de religião. A relativa ausência desse tema como central, contudo, reflete sua relevância para a sociedade espanhola: o catolicismo marcou a história da Espanha e ainda é um elemento cultural importante, mas não influencia o dia a dia e a filosofia de vida da população tão intensamente.
Em uma Espanha que se diz 70% católica, de acordo com pesquisa realizada pelo Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS) em 2017, os personagens de Almodóvar, embora a abracem de outras formas, rejeitam o dogma da religião. “Eu tenho meu sistema moral autônomo”, afirmou o diretor em entrevista ao The Guardian, 2006. Seus filmes se passam em um mundo amoral, isento de julgamentos nessa esfera. José Arroyo, em The Oxford Guide to Film Studies (1998), organizado por John Hill e Pamela Gibson, escreveu que as transgressões sociais são narradas como perfeitamente morais dentro dos termos de cada filme de Almodóvar, e que a audiência é convidada a se identificar com o transgressor.

[Warners/Sony]
Essa brincadeira, essa zombaria, é constantemente estabelecida através de uma paródia iconoclasta. Maus Hábitos está repleto de misturas entre elementos religiosos e não religiosos, como um quadro de cortiça com uma estatueta de Jesus Cristo na cruz em meio a fotos de celebridades, o que provoca um questionamento sobre a real representatividade da religião através de figuras. Em A Pele que Habito, Marilia (Marisa Paredes) usa uma cruz no pescoço o tempo todo, mas não tem escrúpulos para apoiar o filho legítimo, mesmo que seja em relação ao assassinato de seu bastardo. Além disso, os altares de Almodóvar são invadidos por elementos kitsch, como fotos de Marilyn Monroe e objetos deliberadamente extravagantes. O diretor faz uso intenso de itens religiosos como decoração, no cenário e nos atores.
O espanhol e o kitsch
Kitsch nasceu como um termo pejorativo para designar o mau gosto artístico ou produções consideradas de qualidade inferior. Com a ascensão da arte pop após a Segunda Guerra Mundial, que recusava a separação entre vida e arte e buscou superar as fronteiras entre arte erudita e popular, o kitsch passou a ser mais aceito, tornando-se uma muito reproduzido. Almodóvar adotou esse exterior brega que subverte os padrões estéticos de modo irônico, e o misturou à religião, tratando-a de forma ambivalente: sagrado e profano. Valendo-se desse estilo, transmite ideias sérias de maneira divertida.
“A estética kitsch aparece em todos os meus filmes, e é inseparável da prática religiosa”, contou o diretor em Conversaciones con Pedro Almodóvar (2001), de Fréderic Strauss. “Eu usei a religião para falar de sentimentos tipicamente humanos. O que me interessa, o que me fascina, o que me move na prática religiosa é sua capacidade de criar uma comunidade entre as pessoas… Eu transformo linguagem religiosa em linguagem profundamente humana e amorosa. Para mim, o aspecto mais interessante da religião é sua teatralidade”.
Julieta é representante dessa humanidade e dessa teatralidade. A personagem que dá nome ao filme, interpretada por Emma Suárez e Adriana Ugarte, dá aulas a colegiais sobre Tragédia Grega, até que sua própria vida torna-se uma. Apesar de não ser explicitamente o Deus católico, Almodóvar brinca com forças que estão além do terreno, e que fazem do homem uma forma de entretenimento. Em Maus Hábitos, é nítido o senso de comunidade. As freiras pertencem a uma ordem renegada, conhecida como Redentoras humilhadas, e tomam nomes auto-depreciativos como Rat (Rata), Damned (Condenada) e Manure (Esterco). Embora os apelidos sejam uma forma de crítica e satirização, também demonstram afetividade entre as irmãs.

[Warner]
De espada, sem escudo
Entre decoração, zombaria, transgressão, caracterização do povo espanhol e comunidade, um de seus filmes que mais se aproxima da discussão tangível de religião é Má Educação: o tema da pedofilia dentro da Igreja católica é abordado. Contudo, funcionando dentro da crítica, Almodóvar consegue fazer com que o padre abusivo produza empatia ─ uma empatia que incomoda, que obriga a ver a vítima nos olhos do vilão, que força a enxergar o patético no perverso.

[Warner]
por Amanda Péchy
amandapechyduarte@gmail.com